Descarbonização no imobiliário? “Há um longo caminho a percorrer”

07-11-2024

Mercado Voluntário de Carbono pode "ter impacto muito significativo no setor", diz Tomás Araújo, da Cushman & Wakefield Portugal.

É impossível falar do setor imobiliário e da construção, seja em que segmento for – residencial, industrial e logística, retalho, escritórios, hotelaria e alternativo –, sem trazer para discussão temas como a descarbonização, a sustentabilidade, a eficiência energética e os critérios Environmental, Social e Governance (ESG). E Portugal está a querer fazer o seu trabalho neste processo de mudança, de forma (também) a acompanhar as metas definidas pela União Europeia (UE). Ainda há, no entanto, "um longo caminho a percorrer no setor imobiliário para alcançar uma descarbonização efetiva", tal como aponta ao idealista/news Tomás Araújo, responsável pela área de Agribusiness & Forestry Bussiness na Cushman & Wakefield (C&W) Portugal.

Na mesma entrevista - realizada por escrito e que contou também com a participação de Ana Luísa Cabrita, responsável pela área de Sustainability & ESG Services na C&W Portugal - é abordada, entre outros temas, a importância do Mercado Voluntário de Carbono (MVC) em Portugal, que já está legislado, tendo as portarias que estabelecem as suas regras sido recentemente publicadas em Diário da República.

Segundo Ana Luísa Cabrita, tendo em conta o desenvolvimento tecnológico atual, "é ainda oneroso e em algumas situações impossível chegar a emissões de carbono zero principalmente na edificação existente, pelo que certamente será necessário a via da compensação de emissões". "É nesse sentido que a regulação do MVC poderá ser essencial para alcançar a descarbonização do setor", explica, sublinhando que só com um "mercado regulado será possível promover, de forma séria e transparente, processos de compensação" para se alcançar a neutralidade carbónica.

Já foram publicadas em Diário da República as portarias que estabelecem as regras do MVC. O que está em causa e de que forma estas novas regras impactam o setor imobiliário?

Tomás Araújo: Desde o início do ano que foi publicada legislação que pretende instituir e regulamentar o MVC em Portugal. Este mercado permite que indivíduos, empresas e outras entidades invistam em projetos de redução de emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE) ou de sequestro de carbono, gerando créditos de carbono que podem ser comprados e vendidos. O objetivo é promover a neutralidade carbónica e incentivar práticas sustentáveis em várias áreas, incluindo a gestão agrícola e florestal.

A instituição do MVC e o estabelecimento das regras para o seu funcionamento podem ter um impacto muito significativo no setor imobiliário. Propriedades que adotem práticas sustentáveis e participem em projetos de sequestro de carbono podem ver um aumento no seu valor de mercado. A implementação deste tipo de projetos promove o desenvolvimento sustentável e o restauro ecológico, melhorando a resiliência das propriedades e dos ecossistemas contra os riscos ambientais, como por exemplo os incêndios florestais. Estes projetos, e mais concretamente o MVC, irá trazer uma fonte de rendimento adicional para proprietários de propriedades rústicas e urbanas, desde que cumpram os requisitos necessários para a aprovação dos projetos pela comissão técnica de avaliação.

Estas novas regras representam um passo importante na estratégia de Portugal para alcançar a neutralidade climática, assumir os seus compromissos no âmbito da lei sobre o restauro ecológico, recentemente aprovada pela UE, e podem trazer benefícios significativos para o setor imobiliário, ao promover práticas mais sustentáveis e resilientes. 

A legislação publicada, embora ainda falte alguma informação, foi extremamente importante para a definição e credibilização deste mercado.

Que regras são estas, de forma resumida? Há mais pontos positivos que negativos?
Tomás Araújo:

  • Decreto Lei nº 4/2024 – Institui o MVC e estabelece as regras para o seu funcionamento. (Publicado a 5/01/2024);
  • Portaria nº 239/2024/1 – Estabelece os montantes das taxas a cobrar no âmbito do MVC pelas entidades supervisora e gestora da plataforma de registo. (Publicado a 02/10/2024);
  • Portaria nº 240/2024/1 - Define os critérios de qualificação para o exercício da atividade de verificador independente de projetos de mitigação de emissões de gases com efeito de estufa e identifica a entidade gestora do sistema de qualificação, no âmbito do MVC. (Publicado a 02/10/2024);
  • Portaria nº 241/2024/1 - Estabelece os requisitos gerais da plataforma eletrónica de registo do MVC. (Publicado a 02/10/2024).

Os pontos positivos deste mercado incluem criação de novas oportunidades de investimento em projetos "verdes", incentivo a práticas sustentáveis, valorização de propriedades consideradas vulneráveis e com baixos níveis de gestão e combate às alterações climáticas. Por outro lado, é importante perceber que a implementação destes projetos e a respetiva certificação e acompanhamento terão um custo significativo, que terá de ser compensado pelo valor dos créditos de carbono. Outra questão importante é o risco de 'greenwashing' que poderá ser evitado se for adotada uma política clara e transparente de divulgação de dados, que forneça informações detalhadas e comprováveis sobre as ações e o progresso alcançado em relação às metas estabelecidas. Adicionalmente, é muito importante que o sistema de certificação e acompanhamento seja rigoroso e gerido por organismos de verificação aprovados.

É fundamental promover uma cultura de transparência e acompanhamento contínuo, onde todos os intervenientes possam confiar nas informações fornecidas. No caso de não cumprimento, serão aplicadas sanções pesadas para que se diminua ao máximo o risco de 'greenwashing'.

O MVC promete, por exemplo, reconhecer e compensar as externalidades positivas dos projetos agroflorestais, como as práticas sustentáveis dos produtores, certo? O que está em causa, em concreto?

Tomás Araújo: Sim, o MVC reconhece e compensa as externalidades positivas dos projetos agroflorestais, promovendo o desenvolvimento de projetos que aumentem o sequestro de carbono, a conservação da biodiversidade, a melhoria da qualidade do solo e da água, e a redução de emissões de gases com efeito de estufa. Por cada tonelada de CO2 sequestrado por um projeto, é gerado um crédito de carbono. Estes créditos são registados e podem ser vendidos no mercado, através da plataforma a ser desenvolvida pela ADENE, proporcionando uma fonte adicional de rendimento para os proprietários.

Resumidamente, este mercado promove a utilização de práticas sustentáveis, recompensando os proprietários ou promotores dos projetos pelos benefícios ambientais gerados, contribuindo assim para uma gestão equilibrada dos territórios, para a neutralidade carbónica e por uma maior sustentabilidade e conservação do planeta.

Investir em terrenos agrícolas em Portugal é um negócio que parece estar cada vez mais na mira dos investidores imobiliários, nomeadamente estrangeiros. Também a este segmento o MVC trará novidades?

Tomás Araújo: O MVC em Portugal trata-se de um novo segmento que pode ser explorado por parte dos investidores, nacionais e internacionais. Por um lado, é possível ter rendimento de terrenos que outrora eram considerados inaptos, ou com um nível de capacidade de gerar receitas muito reduzido, por outro lado, permite ajudar a combater as alterações climáticas, ou compensar as próprias emissões da entidade que investe. Estas medidas não só valorizam os terrenos agrícolas e com vocação agroflorestal, como também promovem a sustentabilidade e a resiliência ambiental, alinhando-se com as tendências globais de investimento responsável e atraindo mais investidores para o mercado imobiliário português.

Para que este mercado atinja o seu potencial, é essencial definir claramente todas as regras necessárias ao seu funcionamento e garantir que o valor dos créditos de carbono cobre os custos do projeto, de monitorização, de registo e por fim da certificação, remunere significativamente a decisão tomada pelo investidor.

No caso do setor imobiliário, muito se tem falado na importância de apostar na sustentabilidade, na eficiência energética dos edifícios e na descarbonização. O que está a ser feito em Portugal nesse sentido?

Ana Luísa Cabrita (responsável pela área de Sustainability & ESG Services na C&W PortugalCushman & Wakefield): Está a ser realizado um esforço, por parte do setor, para promover a eficiência energética dos edifícios. Este esforço está a ser feito essencialmente, ao nível das novas edificações, mas a nova Diretiva 2024/1275 estabelece metas ambiciosas para a redução do consumo de energia e promove a descarbonização do setor imobiliário até 2050, atuando também ao nível da edificação existente. É de facto necessário promover a redução das emissões de carbono para mitigação das alterações climáticas e cumprimento do Tratado de Paris.

À data de hoje, considerando o desenvolvimento tecnológico atual, é ainda oneroso e em algumas situações diria que impossível, chegar a emissões de carbono zero principalmente na edificação existente, pelo que certamente será necessário a via da compensação de emissões. É nesse sentido que a regulação do MVC poderá ser essencial para alcançar a descarbonização do setor.

Apenas num mercado regulado será possível promover, de forma séria e transparente, processos de compensação para alcançarmos a neutralidade carbónica.

Estas novas regras do MVC visam também mitigar e/ou reduzir as emissões de Gases Efeito de Estufa (GEE), certo? Há um longo caminho a percorrer nesse sentido, nomeadamente no setor imobiliário?

Tomás Araújo: Sim, estas medidas e a implementação do MVC, além do sequestro, também visam mitigar ou reduzir as emissões de GEE. No setor imobiliário existe um longo caminho a percorrer para alcançar uma descarbonização efetiva. A maioria dos investidores já se encontra sensibilizada para estas questões, principalmente pelo impacto que a não adaptação poderá ter no valor das suas carteiras de imóveis ao longo do tempo. O mercado imobiliário irá evoluir na perspetiva de valorizar imóveis que apresentem altos níveis de certificação e eficiência energética, pelo que os investidores serão obrigados a adaptarem-se a esta realidade, sob pena de verem as suas carteiras de imóveis desvalorizadas em mercado.

Existem várias medidas e iniciativas em curso, como a reabilitação energética dos edifícios, a utilização de fontes de energia renováveis, entre outros. No entanto, é importante ter consciência que adotar este tipo de práticas terá um custo muito significativo e a gestão destes processos pode ser muito complexa. Por essas razões, é importante continuar a incentivar e sensibilizar todos os intervenientes neste setor para estas questões e encorajá-los a adotar práticas sustentáveis. Toda a cadeia de desenvolvimento do edificado deverá adaptar-se à nova realidade.


As normas europeias relativas à melhoria da eficiência energética de edifícios proíbem a produção de GEE por prédios construídos a partir de 2030, sendo que até 2050 todos os edifícios devem cumprir com este requisito, mesmo os existentes. Será uma meta tangível em Portugal?

Ana Luísa Cabrita: É uma meta ambiciosa, mas os desafios existentes em Portugal são semelhantes aos dos restantes países da UE. O desafio será o grande motor para alcançarmos soluções, pelo que estamos a assistir a um momento de grande inovação. Está a ocorrer uma transformação tecnológica sem precedentes que continuará nos próximos anos e que nos permitirá encontrar as soluções necessárias à descarbonização do setor.

É possível afirmar que o MVC em Portugal representa uma oportunidade real para o setor imobiliário?

Tomás Araújo: Apesar dos desafios que enfrenta, mais concretamente a definição clara das regras, o MVC representa uma oportunidade real para o setor imobiliário que não deve ser negligenciada. Se bem estruturado e regulamentado, pode fornecer um novo fluxo de receitas para os proprietários, contribuindo, ao mesmo tempo, para a mitigação das alterações climáticas e o restauro das nossas florestas autóctones. Este mercado pode ainda promover a revitalização de terrenos com baixos níveis de gestão ou abandonados, incentivando práticas de gestão que aumentem o sequestro de carbono e, consequentemente, a rentabilidade dessas propriedades.

Qual o impacto deste tipo de medidas para o proprietário particular ou para um inquilino?

Ana Luísa Cabrita: O MVC agora criado é voluntário, isto é, não haverá à partida qualquer obrigatoriedade, nem para proprietários, nem para inquilinos, pelo menos à data de hoje e com a legislação existente. É apenas uma possibilidade de compensar emissões existentes pela qual poderão optar, no caso de quererem reduzir a sua pegada carbónica.


Fonte: Idealista/news